Muito
se tem falado sobre a EDP, rendas excessivas, lucros excessivos, ordenados da
Administração excessivos… Mas pouco se tem ido ao fundo do problema, este
artigo é um pequeno contributo para essa pesquisa e ajudar a trazer ideias
claras sobre o rumo atual.
1. A criação da EDP
A
criação da Eletricidade de Portugal, Empresa Pública, em 1976, foi uma
necessidade do caminho de Abril. A nacionalização e fusão das 13 empresas então
existentes permitiu construir uma vastíssima rede e fazer chegar o progresso e
a dinamização económica a todo o território nacional, nomeadamente com o
processo de eletrificação rural. Centenas ou milhares de aldeias festejaram a
chegada da luz tornando a lâmpada doméstica ou pública, o frigorífico ou o
ferro de engomar elétrico coisas democraticamente vulgares e elementarmente
úteis ao progresso.
A
nacionalização respondeu, globalmente, aos princípios socialistas do direito do
acesso à energia e à criação de uma tarifa única nacional e de uma tarifa
social – direitos que a privatização pôs
em causa. O direito à energia elétrica fez ligar consumidores que nem em 200
anos pagariam os custos da instalação e ajudou a consagrar a igualdade entre
todos os portugueses. A tarifa única, independentemente da discussão do seu
justo valor, reforçou essa igualdade. A rentabilidade financeira de uma ligação
foi subordinada ao direito ao preço igual pela energia, vivesse o cidadão num
prédio do centro de Lisboa ou num lugar disperso e isolado do interior.
O enorme salto
civilizacional que o país deu após o 25 de Abril tem na EDP, pública, um pilar
fundamental.
De
uma forma geral, os avanços conseguidos foram tão fortes que só 36 anos depois
claudicaram. A mercantilização total da energia é uma derrota ideológica dos
socialistas e uma vitória da “modernidade” neoliberal conservadora.
Estes
36 anos são também o percurso e a vida de dezenas de milhares de trabalhadores
que construíram linhas com ferramentas e processos de trabalho rudimentares,
comparados com os de hoje, centenas pagando com a vida a construção do “direito
público à luz”.
2. A viragem
O
ascenso dos “valores de mercado” sobre os valores socialistas tem como
consequência a transformação da EDP em sociedade anónima, Janeiro de 1991,
pelas mãos dos então primeiro-ministro Cavaco Silva e do presidente Mário Soares.
Em 1994, consolida-se legalmente [Dec.Lei 131/94, 19 de Maio] a cisão da
empresa em empresas de “área de negócio” ou área geográfica.
A
viragem é todo um início de conceitos, o trabalhador passa a ser colaborador
[mais tarde tenta-se a implementação da figura do cliente interno], a
concorrência tira o lugar do serviço público, o cliente desaloja o consumidor…
O
“enxugamento” da empresa reduz milhares de trabalhadores pela via da reforma
antecipada e da rescisão de contrato por “mútuo acordo”, encerram-se inúmeras
delegações transferindo e concentrando trabalhadores e pondo fim à relação de
proximidade entre a empresa e a população, verticalizam-se serviços e
organização do trabalho, inicia-se a subcontratação em larga escala…
A
subcontratação em larga escala [e subcontratação da subcontratação], que hoje
atinge na empresa/grupo tarefas elementares e estratégicas – com consequências
negativas para a própria EDP -, fez descer 50 ou 60% o valor dos salários dos
trabalhadores subcontratados do sector, generalizou a precariedade e dificultou
sobremaneira o primado da segurança no trabalho. Nos últimos dez anos, quando
os métodos de segurança avançaram décadas e estão acessíveis, morreram 50
trabalhadores da EDP e empreiteiros em acidentes de trabalho, algumas vezes por
razões meramente economicistas por parte das empresas prestadoras de serviços
(ausência de formação profissional adequada, falta ou deficiente manutenção e
utilização de equipamentos...).
As
transformações também trazem consigo a informatização de equipamentos e
funções, a implementação do comando à distância e a centralização do controlo
de equipamento, uma ampla alteração nas tarefas dos trabalhadores, uma redução
de tempos de interrupção de energia e uma melhoria das redes com investimentos
assinaláveis. Mas é preciso que fique claro: a modernização, a inovação
tenológica e as qualidades técnicas ou da rede são independentes do fator
privatização e devem estar presentes em qualquer gestão.
O
programa de privatizações para o biénio 96/97 aprovado pelo XIII Governo
Constitucional, do PS, António Guterres, é decisivo. O socialismo já tinha sido
metido na gaveta, estava na hora de gritar: “todo o poder aos mercados”.
A
1ª fase de privatização da EDP ocorreu em Junho de 1997 [Dec.Lei de Abril 97], e
tal como as seguintes, as 2ª, 3ª e 4ª fases são decididas por António Guterres
e consentidas por Jorge Sampaio. Na 5ª fase estão Santana Lopes e Jorge
Sampaio. Na 6ª fase estão José Sócrates e Jorge Sampaio. Na 7ª fase estão José
Sócrates e Cavaco Silva. E nesta última Passos Coelho e Cavaco Silva. Em jeito
de humor negro, poderemos dizer que o PS ganha ao PSD por 12-4; de facto, o PS tem sido até agora o campeão das
privatizações.
3. As contas que falam
claro
Aqui
chegados importa fazer umas contas “elementares” mas muito elucidativas: as
várias fases de privatização da EDP renderam ao Estado cerca de 10.788 milhões
de euros. Ora acontece que, se somarmos apenas os resultados líquidos da EDP
para o mesmo período, eles rondarão os 9.350 milhões de euros – uma diferença
de apenas 1.438 milhões de euros. Só
por aqui se verifica como a empresa tem sido vendida barata ao capital privado.
Mas
podemos ir um pouco mais longe. Segundo o relatório de peritos da Universidade
de Cambridge “as empresas produtoras de energia beneficiam de rendas excessivas
no valor de 3.925 milhões de euros, até 2020”. O governo anuncia querer “recuperar”
2.439 milhões, mas 1.486 milhões de euros são pagos. Ora este valor ainda é
maior em 48 milhões de euros do que o apurado anteriormente.
Sendo
contas não absolutamente rigorosas elas demonstram, no entanto, de forma clara,
a ideia que a privatização da energia
elétrica e da EDP trouxe um prejuízo económico ao país. O argumento de que
privatizar gera receitas é falso porque impede o Estado de receber os lucros
futuros das empresas e, também muito importante, decapita-o da sua capacidade
de alavancagem económica. Capacidade essa que é tão importante para medidas de
contra-ciclo em tempos de crise económica. Ironicamente, a galinha dos ovos de
ouro foi, não só vendida, mas, vendida por um preço de liquidação.
4. E a política, pá?
Há uma opção de fundo para
o sector da energia
que determinou uma sucessão de decisões políticas e consequentemente
legislativas; essa linha de fundo chama-se
mercantilização da energia e destruição do serviço público. Foram PSD, PS e
CDS que partilharam a responsabilidade por revisões constitucionais, leis
desreguladoras, privatizações, cisões de empresas, nomeações de administrações,
venda de empresas ao capital estrangeiro (…) mas hoje querem agir como se
fossem os agentes mais inocentes e impolutos. Os problemas hoje vividos são
originados por essa opção política, também seguida a nível europeu, - a opção
dos três partidos que hoje estão no arco da troika. Nessas opções políticas
também conta:
4.1.
A introdução na tarifa dos chamados Custos Económicos de Interesse Geral e que
abrangem limpeza de florestas, funcionamentos do OMIP e OMIClear (Bolsa do
Mercado Ibérico de Energia), ERSE, Autoridade da Concorrência, garantia de
potência, CAEs, Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual, sobrecusto com a
produção em regime especial, rendas de défices tarifários, tarifa social,
Planos de Promoção do Desempenho Ambiental, rendas das concessões a pagar aos
municípios… Como refere o famoso discurso do ex. Secretário de Estado Henrique
Gomes: “estes incentivos e apoios assumem hoje valores extremamente elevados
nas faturas dos consumidores e põem em causa a sustentabilidade económica do
Sistema Elétrico Nacional”.
4.2.
A sobrevalorização da opção pelo aumento de produção em desfavor da componente
melhoria da eficiência energética. Compreende-se, tratando-se o kwh como uma
mera mercadoria transaccionável cujo lucro é maior quanto maior for a produção
e a comercialização, interessa mais aumentar a produção do que reduzir os
consumos. É talvez por isso que:
a) Se considera que o Plano Nacional de Ação
para a Eficiência Energética tem taxas de execução baixas e a sua proposta de
revisão, agora em discussão pública, é uma espécie de ilusão de sucesso
ambiental através do mercado irreal;
b) As associações ambientalistas se opuseram
ao Plano Nacional de Barragens não só pelas questões ambientais mas também
porque “a mesma quantidade de eletricidade que as
barragens viriam a gerar poderia ser poupada com medidas de uso eficiente da
energia, na indústria e nos edifícios, com investimentos dez vezes mais baixos,
na casa dos 360 M€”.
c) Se
tende para uma sobre-instalação da capacidade produtiva de energia elétrica.
Segundo dados públicos a capacidade instalada terá crescido percentualmente
quase o triplo do crescimento do consumo.
4.3. O uso da tarifa de energia elétrica como
forma de espoliação popular, à imagem das opções do governo tecnocrata grego, e
de que é exemplo o aumento do IVA de 6 para 23% a que foi acrescido um aumento
de preço de 4% e o anúncio de um novo aumento trimestral da tarifa regulada.
5. A burla ideológica da
concorrência por detrás das rendas excessivas
Não
devemos fugir à polémica. O país tem avançado positivamente na produção de
energia renovável, nomeadamente eólica, diminuindo a dependência energética e é
necessário que esse movimento não pare - até porque o petróleo já atingiu o seu
pico de produção e entrou na linha descendente. Acresce, na minha opinião, que
o seu preço também está muito dependente dos ataques especulativos, das crises
políticas e das condenáveis ações militares sobre países produtores e ainda da
necessidade de os Estados Unidos sustentarem, permanentemente, uma procura de
dólares para fazer face à contínua emissão de moeda que pratica como forma de
financiar os seus défices.
Devemos apoiar e defender os incentivos à produção de energia renovável, mas numa situação de enorme crise económica, em que a palavra sacrifícios só tem tido um lado, é justo reavaliar as formas de financiamento existentes, bem como a distribuição dos custos pelos diversos operadores. Partindo daqui – como manifestou a DECO – parece-me correto, desde já, “garantir que o auto-consumo da energia produzida pelo cogerador seja uma obrigação, podendo este vender apenas à rede a energia excedente não consumida”.
Devemos apoiar e defender os incentivos à produção de energia renovável, mas numa situação de enorme crise económica, em que a palavra sacrifícios só tem tido um lado, é justo reavaliar as formas de financiamento existentes, bem como a distribuição dos custos pelos diversos operadores. Partindo daqui – como manifestou a DECO – parece-me correto, desde já, “garantir que o auto-consumo da energia produzida pelo cogerador seja uma obrigação, podendo este vender apenas à rede a energia excedente não consumida”.
Mas
o que é extraordinário é ver a GALP, de Amorim e Isabel dos Santos, parte
integrante do concubinato que mantem os preços dos combustíveis elevadíssimos,
parte integrante de uma das maiores mentiras do país: a concorrência nos
combustíveis, entrar como comercializador no mercado da energia lançando uma
promoção com descontos. Porque é que a GALP nunca fez descer os preços do gás,
gasolina e gasóleo se estava em plena concorrência?
A
burla ideológica da concorrência está bem demonstrada nos combustíveis. Mas é
invocando a necessidade da introdução de uma concorrência que há-de baixar os
preços da energia que hoje se aumentam os preços de energia e se destroem as
tarifas reguladas. A desfaçatez e o indecoro em prol da privatização chega ao
ponto “a partir do dia 1 de Julho de 2012, aos
clientes que mantenham os seus contratos de fornecimento de eletricidade com um
comercializador de último recurso será aplicada uma tarifa de venda
transitória, fixada pela ERSE”. Ou seja, os consumidores vão ser obrigados a
transitar para o mercado desregulado ou serão castigados se lá ficarem.
Para que não haja dúvidas, vale a pena
“chamar” João
Santana, Prof. Catedrático do IST, ex vogal da ERSE: “Se a produção de energia
elétrica necessita de enormes investimentos e ligações às redes, o que
estabelece barreiras à entrada e à saída de empresas, a sua comercialização
(venda) requer reduzidos ativos. A experiência tem mostrado como é fácil a
entrada e a saída das empresas de comercialização”. Pergunta-se então: porque é
que “sendo fácil” a entrada dos comercializadores ainda é tão tímida nas
potências mais baixas? Pela simples razão de que a margem de comercialização
ainda é muito baixa (há economistas que afirmam ser de 3%). Uma das razões
porque é preciso (interessa a essas empresas) destruir as tarifas reguladas.
As
chamadas rendas excessivas, segundo os peritos da Universidade de Cambridge,
obrigariam, caso não fossem tomadas medidas imediatas, a um aumento anual de
4,7% no preço da eletricidade. Pergunta-se: a sua retirada vai significar uma
redução ou manutenção do preço do Kwh ou vai significar um aumento das margens
de lucro para os comercializadores?
Talvez
a resposta a esta pergunta esteja nas declarações de Nuno Ribeiro da Silva(1),
presidente da Endesa, ao “Dinheiro Vivo” em 29/01/2012: “Enquanto as pessoas
não saírem da tarifa regulada não vou ter interesse nenhum em angariar mais
clientes (…) não compensa”. Esclarecedor!
Como
é reconhecido pelo Prof. João Santana, ex vogal da ERSE, “A procura de energia
elétrica é uma função cujo comportamento, no curto e médio prazo, se determina
com razoável precisão (…) as empresas conhecem exatamente a curva dos custos
dos seus competidores. Não é difícil prever a reação do mercado e, nestas
condições, comportamentos oligopolísticos são possíveis com facilidade”(2). É
aliás o que acontece na Alemanha, na França, no Reino Unido, etc, etc.
Aqueles
que esperavam que a concorrência iria desencadear uma baixa de preços e um
mercado a fluir para a perfeição de um ótimo de Pareto “desiludiram-se” quando
foram os próprios mercados que garantiram a possibilidade da comercialização
bilateral e garantiram a manutenção do controlo do mercado pelas grandes
empresas.
A
“desilusão” é partilhada pelo ex Presidente da ERSE, Abel Mateus: “os mercados
energéticos caracterizam-se pela falta de transparência, que se correlaciona
com a falta de liquidez dos mercados grossistas – relacionado com a prevalência
das transações bilaterais intra-grupo ou com a preponderância dos contratos de
longa duração na estrutura de aprovisionamento de gás natural – mas também com
o acesso em tempo útil a informação necessária para o bom funcionamento dos
mercados”(3).
Não
será preciso muito mais para demonstrar em como a concorrência é uma burla.
6. Três perguntas, de um
leigo, sobre a mercantilização da energia elétrica
-
Se a energia passa a mercadoria suscetível de especulação, como aconteceu com o
petróleo e os cereais, será de estranhar a entrada de especuladores financeiros(4)
no mercado ibérico de energia e negócios especulativos com resultados bastante
negativos para empresas, trabalhadores e populações? O caso da ENRON é conhecido.
-
Se a energia é mera mercadoria, o armazenamento em barragens de albufeira será
um modo (ainda que limitado) de acumulação “armazenamento” de mercadoria para
influenciar o mercado. Quais serão os critérios preponderantes para a produção
hídrica? E se acontecer que a vantagem e o momento do negócio conflitue com a
prevenção de cheias ou a garantia de caudais em tempo de seca?
-
Se o que determina a entrada de produtores na rede é o valor da oferta do seu
Kwh não poderá acontecer um conflito entre a realidade física da rede e a variabilidade da localização das injeções de potência
determinada pelo negócio?
7. Os trabalhadores e o
futuro da empresa
Até
agora tem existido um clima “pouco ríspido” na empresa/grupo. Objetivamente,
têm sido fragilizados direitos nomeadamente com a diminuição gradual de acesso
a médicos contratualizados ou a retirada de comparticipações consideradas
complementares do SNS. Mas é verdade que os novos recrutamentos se processam
por uma empresa do próprio grupo a cujos trabalhadores não é aplicado o ACT
enquanto tal. A divisão está a cavar-se de uma forma crescente e conhecem-se
anseios para acabar de vez com o ACT em nome das dificuldades dos tempos
atuais.
Aqui
chegados, importa interrogarmo-nos sobre o futuro do grupo EDP – nomeadamente
da empresa EDP Distribuição. O exemplo seguido na ferrovia, com o
desmembramento da CP, foi o de autonomizar a REFER numa empresa independente de
gestão da infraestrutura. Partindo de uma situação muito diferente, mas em nome da concorrência, foi imposta
uma cisão (spin-off) no grupo PT
obrigando à saída da PT Multimédia (que hoje é a ZON). Continuará a EDP
Distribuição integrada no Grupo EDP? Os trabalhadores devem lutar por isso!
O
desenvolvimento de redes e a generalização dos contadores inteligentes –
aplicado segundo a ótica capitalista - irá ajudar a transformar a relação
consumidor/empresa numa coisa parecida com a tvcabo: reduzida intervenção do
trabalhador da empresa incumbente, subcontratação geral do projeto à execução,
relacionamento à distância, precariedade geral, direitos escassos e salários
ainda mais baixos, aumento da conflitualidade com os consumidores, denegação do
direito à energia e serviço público transformado numa “tarifa social” com um
desconto caridoso de 2% num “comercializador de último recurso”. É o ultra-conservadorismo dominando a
política nacional e europeia. É a nova ideologia neo-conservadora que segue
o caminho da austeridade e do autoritarismo e em cada momento surpreende o país
com novas medidas de exploração social e ataque ideológico.
Tudo
isto gera um caldo de temor e instabilidade para os trabalhadores. O momento é
o de chamar à cidadania, introduzir instrumentos de participação coletiva,
procura de unidade para a luta garantindo que a retirada de direitos não pode
ficar sem a afirmação da resistência. Quem
não luta perde de certeza.
A nossa opção, a que
garante a estabilidade do sector elétrico e dos seus trabalhadores, um serviço
público de futuro para o avanço civilizacional de todos os cidadãos e a
sustentabilidade ambiental, só pode ser a renacionalização das empresas de
energia fundindo-as numa única empresa de produção, transporte, distribuição e
comercialização.
Vitor Franco
(Membro da Comissão de Trabalhadores da EDP Distribuição)
(publicado em www.acomuna.net)