domingo, 1 de julho de 2012

EDP, o mau da fita?

Muito se tem falado sobre a EDP, rendas excessivas, lucros excessivos, ordenados da Administração excessivos… Mas pouco se tem ido ao fundo do problema, este artigo é um pequeno contributo para essa pesquisa e ajudar a trazer ideias claras sobre o rumo atual.

1. A criação da EDP
A criação da Eletricidade de Portugal, Empresa Pública, em 1976, foi uma necessidade do caminho de Abril. A nacionalização e fusão das 13 empresas então existentes permitiu construir uma vastíssima rede e fazer chegar o progresso e a dinamização económica a todo o território nacional, nomeadamente com o processo de eletrificação rural. Centenas ou milhares de aldeias festejaram a chegada da luz tornando a lâmpada doméstica ou pública, o frigorífico ou o ferro de engomar elétrico coisas democraticamente vulgares e elementarmente úteis ao progresso.
A nacionalização respondeu, globalmente, aos princípios socialistas do direito do acesso à energia e à criação de uma tarifa única nacional e de uma tarifa social  – direitos que a privatização pôs em causa. O direito à energia elétrica fez ligar consumidores que nem em 200 anos pagariam os custos da instalação e ajudou a consagrar a igualdade entre todos os portugueses. A tarifa única, independentemente da discussão do seu justo valor, reforçou essa igualdade. A rentabilidade financeira de uma ligação foi subordinada ao direito ao preço igual pela energia, vivesse o cidadão num prédio do centro de Lisboa ou num lugar disperso e isolado do interior.
O enorme salto civilizacional que o país deu após o 25 de Abril tem na EDP, pública, um pilar fundamental.
De uma forma geral, os avanços conseguidos foram tão fortes que só 36 anos depois claudicaram. A mercantilização total da energia é uma derrota ideológica dos socialistas e uma vitória da “modernidade” neoliberal conservadora.
Estes 36 anos são também o percurso e a vida de dezenas de milhares de trabalhadores que construíram linhas com ferramentas e processos de trabalho rudimentares, comparados com os de hoje, centenas pagando com a vida a construção do “direito público à luz”.

2. A viragem
O ascenso dos “valores de mercado” sobre os valores socialistas tem como consequência a transformação da EDP em sociedade anónima, Janeiro de 1991, pelas mãos dos então primeiro-ministro Cavaco Silva e do presidente Mário Soares. Em 1994, consolida-se legalmente [Dec.Lei 131/94, 19 de Maio] a cisão da empresa em empresas de “área de negócio” ou área geográfica.
A viragem é todo um início de conceitos, o trabalhador passa a ser colaborador [mais tarde tenta-se a implementação da figura do cliente interno], a concorrência tira o lugar do serviço público, o cliente desaloja o consumidor…
O “enxugamento” da empresa reduz milhares de trabalhadores pela via da reforma antecipada e da rescisão de contrato por “mútuo acordo”, encerram-se inúmeras delegações transferindo e concentrando trabalhadores e pondo fim à relação de proximidade entre a empresa e a população, verticalizam-se serviços e organização do trabalho, inicia-se a subcontratação em larga escala…
A subcontratação em larga escala [e subcontratação da subcontratação], que hoje atinge na empresa/grupo tarefas elementares e estratégicas – com consequências negativas para a própria EDP -, fez descer 50 ou 60% o valor dos salários dos trabalhadores subcontratados do sector, generalizou a precariedade e dificultou sobremaneira o primado da segurança no trabalho. Nos últimos dez anos, quando os métodos de segurança avançaram décadas e estão acessíveis, morreram 50 trabalhadores da EDP e empreiteiros em acidentes de trabalho, algumas vezes por razões meramente economicistas por parte das empresas prestadoras de serviços (ausência de formação profissional adequada, falta ou deficiente manutenção e utilização de equipamentos...).
As transformações também trazem consigo a informatização de equipamentos e funções, a implementação do comando à distância e a centralização do controlo de equipamento, uma ampla alteração nas tarefas dos trabalhadores, uma redução de tempos de interrupção de energia e uma melhoria das redes com investimentos assinaláveis. Mas é preciso que fique claro: a modernização, a inovação tenológica e as qualidades técnicas ou da rede são independentes do fator privatização e devem estar presentes em qualquer gestão.
O programa de privatizações para o biénio 96/97 aprovado pelo XIII Governo Constitucional, do PS, António Guterres, é decisivo. O socialismo já tinha sido metido na gaveta, estava na hora de gritar: “todo o poder aos mercados”.
A 1ª fase de privatização da EDP ocorreu em Junho de 1997 [Dec.Lei de Abril 97], e tal como as seguintes, as 2ª, 3ª e 4ª fases são decididas por António Guterres e consentidas por Jorge Sampaio. Na 5ª fase estão Santana Lopes e Jorge Sampaio. Na 6ª fase estão José Sócrates e Jorge Sampaio. Na 7ª fase estão José Sócrates e Cavaco Silva. E nesta última Passos Coelho e Cavaco Silva. Em jeito de humor negro, poderemos dizer que o PS ganha ao PSD por 12-4; de facto, o PS tem sido até agora o campeão das privatizações.

3. As contas que falam claro
Aqui chegados importa fazer umas contas “elementares” mas muito elucidativas: as várias fases de privatização da EDP renderam ao Estado cerca de 10.788 milhões de euros. Ora acontece que, se somarmos apenas os resultados líquidos da EDP para o mesmo período, eles rondarão os 9.350 milhões de euros – uma diferença de apenas 1.438 milhões de euros. Só por aqui se verifica como a empresa tem sido vendida barata ao capital privado.
Mas podemos ir um pouco mais longe. Segundo o relatório de peritos da Universidade de Cambridge “as empresas produtoras de energia beneficiam de rendas excessivas no valor de 3.925 milhões de euros, até 2020”. O governo anuncia querer “recuperar” 2.439 milhões, mas 1.486 milhões de euros são pagos. Ora este valor ainda é maior em 48 milhões de euros do que o apurado anteriormente.
Sendo contas não absolutamente rigorosas elas demonstram, no entanto, de forma clara, a ideia que a privatização da energia elétrica e da EDP trouxe um prejuízo económico ao país. O argumento de que privatizar gera receitas é falso porque impede o Estado de receber os lucros futuros das empresas e, também muito importante, decapita-o da sua capacidade de alavancagem económica. Capacidade essa que é tão importante para medidas de contra-ciclo em tempos de crise económica. Ironicamente, a galinha dos ovos de ouro foi, não só vendida, mas, vendida por um preço de liquidação.

4. E a política, pá?
Há uma opção de fundo para o sector da energia que determinou uma sucessão de decisões políticas e consequentemente legislativas; essa linha de fundo chama-se mercantilização da energia e destruição do serviço público. Foram PSD, PS e CDS que partilharam a responsabilidade por revisões constitucionais, leis desreguladoras, privatizações, cisões de empresas, nomeações de administrações, venda de empresas ao capital estrangeiro (…) mas hoje querem agir como se fossem os agentes mais inocentes e impolutos. Os problemas hoje vividos são originados por essa opção política, também seguida a nível europeu, - a opção dos três partidos que hoje estão no arco da troika. Nessas opções políticas também conta:
4.1. A introdução na tarifa dos chamados Custos Económicos de Interesse Geral e que abrangem limpeza de florestas, funcionamentos do OMIP e OMIClear (Bolsa do Mercado Ibérico de Energia), ERSE, Autoridade da Concorrência, garantia de potência, CAEs, Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual, sobrecusto com a produção em regime especial, rendas de défices tarifários, tarifa social, Planos de Promoção do Desempenho Ambiental, rendas das concessões a pagar aos municípios… Como refere o famoso discurso do ex. Secretário de Estado Henrique Gomes: “estes incentivos e apoios assumem hoje valores extremamente elevados nas faturas dos consumidores e põem em causa a sustentabilidade económica do Sistema Elétrico Nacional”.
4.2. A sobrevalorização da opção pelo aumento de produção em desfavor da componente melhoria da eficiência energética. Compreende-se, tratando-se o kwh como uma mera mercadoria transaccionável cujo lucro é maior quanto maior for a produção e a comercialização, interessa mais aumentar a produção do que reduzir os consumos. É talvez por isso que:
  a) Se considera que o Plano Nacional de Ação para a Eficiência Energética tem taxas de execução baixas e a sua proposta de revisão, agora em discussão pública, é uma espécie de ilusão de sucesso ambiental através do mercado irreal;
  b) As associações ambientalistas se opuseram ao Plano Nacional de Barragens não só pelas questões ambientais mas também porque “a mesma quantidade de eletricidade que as barragens viriam a gerar poderia ser poupada com medidas de uso eficiente da energia, na indústria e nos edifícios, com investimentos dez vezes mais baixos, na casa dos 360 M€”.
  c) Se tende para uma sobre-instalação da capacidade produtiva de energia elétrica. Segundo dados públicos a capacidade instalada terá crescido percentualmente quase o triplo do crescimento do consumo.
4.3. O uso da tarifa de energia elétrica como forma de espoliação popular, à imagem das opções do governo tecnocrata grego, e de que é exemplo o aumento do IVA de 6 para 23% a que foi acrescido um aumento de preço de 4% e o anúncio de um novo aumento trimestral da tarifa regulada.

5. A burla ideológica da concorrência por detrás das rendas excessivas
Não devemos fugir à polémica. O país tem avançado positivamente na produção de energia renovável, nomeadamente eólica, diminuindo a dependência energética e é necessário que esse movimento não pare - até porque o petróleo já atingiu o seu pico de produção e entrou na linha descendente. Acresce, na minha opinião, que o seu preço também está muito dependente dos ataques especulativos, das crises políticas e das condenáveis ações militares sobre países produtores e ainda da necessidade de os Estados Unidos sustentarem, permanentemente, uma procura de dólares para fazer face à contínua emissão de moeda que pratica como forma de financiar os seus défices.
Devemos apoiar e defender os incentivos à produção de energia renovável, mas numa situação de enorme crise económica, em que a palavra sacrifícios só tem tido um lado, é justo reavaliar as formas de financiamento existentes, bem como a distribuição dos custos pelos diversos operadores. Partindo daqui – como manifestou a DECO – parece-me correto, desde já, “garantir que o auto-consumo da energia produzida pelo cogerador seja uma obrigação, podendo este vender apenas à rede a energia excedente não consumida”.
Mas o que é extraordinário é ver a GALP, de Amorim e Isabel dos Santos, parte integrante do concubinato que mantem os preços dos combustíveis elevadíssimos, parte integrante de uma das maiores mentiras do país: a concorrência nos combustíveis, entrar como comercializador no mercado da energia lançando uma promoção com descontos. Porque é que a GALP nunca fez descer os preços do gás, gasolina e gasóleo se estava em plena concorrência?
A burla ideológica da concorrência está bem demonstrada nos combustíveis. Mas é invocando a necessidade da introdução de uma concorrência que há-de baixar os preços da energia que hoje se aumentam os preços de energia e se destroem as tarifas reguladas. A desfaçatez e o indecoro em prol da privatização chega ao ponto “a partir do dia 1 de Julho de 2012, aos clientes que mantenham os seus contratos de fornecimento de eletricidade com um comercializador de último recurso será aplicada uma tarifa de venda transitória, fixada pela ERSE”. Ou seja, os consumidores vão ser obrigados a transitar para o mercado desregulado ou serão castigados se lá ficarem.
Para que não haja dúvidas, vale a pena “chamar” João Santana, Prof. Catedrático do IST, ex vogal da ERSE: “Se a produção de energia elétrica necessita de enormes investimentos e ligações às redes, o que estabelece barreiras à entrada e à saída de empresas, a sua comercialização (venda) requer reduzidos ativos. A experiência tem mostrado como é fácil a entrada e a saída das empresas de comercialização”. Pergunta-se então: porque é que “sendo fácil” a entrada dos comercializadores ainda é tão tímida nas potências mais baixas? Pela simples razão de que a margem de comercialização ainda é muito baixa (há economistas que afirmam ser de 3%). Uma das razões porque é preciso (interessa a essas empresas) destruir as tarifas reguladas.
As chamadas rendas excessivas, segundo os peritos da Universidade de Cambridge, obrigariam, caso não fossem tomadas medidas imediatas, a um aumento anual de 4,7% no preço da eletricidade. Pergunta-se: a sua retirada vai significar uma redução ou manutenção do preço do Kwh ou vai significar um aumento das margens de lucro para os comercializadores?
Talvez a resposta a esta pergunta esteja nas declarações de Nuno Ribeiro da Silva(1), presidente da Endesa, ao “Dinheiro Vivo” em 29/01/2012: “Enquanto as pessoas não saírem da tarifa regulada não vou ter interesse nenhum em angariar mais clientes (…) não compensa”. Esclarecedor!
Como é reconhecido pelo Prof. João Santana, ex vogal da ERSE, “A procura de energia elétrica é uma função cujo comportamento, no curto e médio prazo, se determina com razoável precisão (…) as empresas conhecem exatamente a curva dos custos dos seus competidores. Não é difícil prever a reação do mercado e, nestas condições, comportamentos oligopolísticos são possíveis com facilidade”(2). É aliás o que acontece na Alemanha, na França, no Reino Unido, etc, etc.
Aqueles que esperavam que a concorrência iria desencadear uma baixa de preços e um mercado a fluir para a perfeição de um ótimo de Pareto “desiludiram-se” quando foram os próprios mercados que garantiram a possibilidade da comercialização bilateral e garantiram a manutenção do controlo do mercado pelas grandes empresas.
A “desilusão” é partilhada pelo ex Presidente da ERSE, Abel Mateus: “os mercados energéticos caracterizam-se pela falta de transparência, que se correlaciona com a falta de liquidez dos mercados grossistas – relacionado com a prevalência das transações bilaterais intra-grupo ou com a preponderância dos contratos de longa duração na estrutura de aprovisionamento de gás natural – mas também com o acesso em tempo útil a informação necessária para o bom funcionamento dos mercados”(3).
Não será preciso muito mais para demonstrar em como a concorrência é uma burla.

6. Três perguntas, de um leigo, sobre a mercantilização da energia elétrica
- Se a energia passa a mercadoria suscetível de especulação, como aconteceu com o petróleo e os cereais, será de estranhar a entrada de especuladores financeiros(4) no mercado ibérico de energia e negócios especulativos com resultados bastante negativos para empresas, trabalhadores e populações? O caso da ENRON é conhecido.
- Se a energia é mera mercadoria, o armazenamento em barragens de albufeira será um modo (ainda que limitado) de acumulação “armazenamento” de mercadoria para influenciar o mercado. Quais serão os critérios preponderantes para a produção hídrica? E se acontecer que a vantagem e o momento do negócio conflitue com a prevenção de cheias ou a garantia de caudais em tempo de seca?
- Se o que determina a entrada de produtores na rede é o valor da oferta do seu Kwh não poderá acontecer um conflito entre a realidade física da rede e a variabilidade da localização das injeções de potência determinada pelo negócio?

7. Os trabalhadores e o futuro da empresa
Até agora tem existido um clima “pouco ríspido” na empresa/grupo. Objetivamente, têm sido fragilizados direitos nomeadamente com a diminuição gradual de acesso a médicos contratualizados ou a retirada de comparticipações consideradas complementares do SNS. Mas é verdade que os novos recrutamentos se processam por uma empresa do próprio grupo a cujos trabalhadores não é aplicado o ACT enquanto tal. A divisão está a cavar-se de uma forma crescente e conhecem-se anseios para acabar de vez com o ACT em nome das dificuldades dos tempos atuais.
Aqui chegados, importa interrogarmo-nos sobre o futuro do grupo EDP – nomeadamente da empresa EDP Distribuição. O exemplo seguido na ferrovia, com o desmembramento da CP, foi o de autonomizar a REFER numa empresa independente de gestão da infraestrutura. Partindo de uma situação muito diferente, mas em nome da concorrência, foi imposta uma cisão (spin-off) no grupo PT obrigando à saída da PT Multimédia (que hoje é a ZON). Continuará a EDP Distribuição integrada no Grupo EDP? Os trabalhadores devem lutar por isso!
O desenvolvimento de redes e a generalização dos contadores inteligentes – aplicado segundo a ótica capitalista - irá ajudar a transformar a relação consumidor/empresa numa coisa parecida com a tvcabo: reduzida intervenção do trabalhador da empresa incumbente, subcontratação geral do projeto à execução, relacionamento à distância, precariedade geral, direitos escassos e salários ainda mais baixos, aumento da conflitualidade com os consumidores, denegação do direito à energia e serviço público transformado numa “tarifa social” com um desconto caridoso de 2% num “comercializador de último recurso”. É o ultra-conservadorismo dominando a política nacional e europeia. É a nova ideologia neo-conservadora que segue o caminho da austeridade e do autoritarismo e em cada momento surpreende o país com novas medidas de exploração social e ataque ideológico.
Tudo isto gera um caldo de temor e instabilidade para os trabalhadores. O momento é o de chamar à cidadania, introduzir instrumentos de participação coletiva, procura de unidade para a luta garantindo que a retirada de direitos não pode ficar sem a afirmação da resistência. Quem não luta perde de certeza.
A nossa opção, a que garante a estabilidade do sector elétrico e dos seus trabalhadores, um serviço público de futuro para o avanço civilizacional de todos os cidadãos e a sustentabilidade ambiental, só pode ser a renacionalização das empresas de energia fundindo-as numa única empresa de produção, transporte, distribuição e comercialização.
Vitor Franco 


(Membro da Comissão de Trabalhadores da EDP Distribuição)
(publicado em www.acomuna.net)

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