A propósito de estarem a ser instalados GPS em viaturas de trabalho, sem ter o parecer prévio e obrigatório de Comissões de Trabalhadores, recordamos este artigo publicado em 20 de dezembro de 2013 da autoria do jurista Jorge Teixeira da Mota:
" O Raul era uma pessoa extremamente atenta à defesa da sua privacidade e aos perigos das novas tecnologias. Mas não se pense que era um cavaleiro andante da era digital como Edward Snowden. Não, a sua história é ligeiramente menos altruísta e quem teve de se pronunciar sobre a mesma foi o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no passado dia 13 de Novembro, por causa do seu despedimento.
Trabalhador na mesma empresa há 25 anos, Raul era motorista de pesados, conduzindo um veículo de transporte de combustível, recebendo de remuneração base ? 582,60 e ? 74,88 de diuturnidades.
Todos os dias carregava o combustível nas instalações da entidade patronal ou em qualquer refinaria que lhe fosse indicada, e recebia instruções precisas para descarregar a mesma nas instalações dos clientes, normalmente bombas de gasolina.
Possuía um telemóvel fornecido pela entidade patronal, que devia permanecer ligado para se manter em contacto e poder receber, desta, chamadas e instruções para o desempenho das suas tarefas. Além disso estava instalado na empresa e nas viaturas um equipamento Masternault/ GPS que registava os trajectos percorridos, distâncias, tempos de paragem e horários de cada uma. No dia 02 de Dezembro de 2011, da sede tentaram contactá-lo pelo telemóvel mas este estava desligado, pelo que consultaram o equipamento Masternault/GPS verificando que a viatura conduzida pelo Raul circulava numa área que não era abrangida pelo percurso que lhe tinha sido destinado naquele dia.
Deveria carregar o combustível na refinaria de Matosinhos e dirigir-se para sul: Vila Nova de Gaia, Albergaria-a-Velha, Vila Nova de Paiva, Arouca e Branca, mas tinha-se deslocado por duas vezes a Vila do Conde. Consultados os registos, constatou a entidade patronal que Raul nos últimos meses se tinha desviado, com regularidade, dos percursos que lhe tinham sido indicados, percorrendo um total de 866,20 quilómetros não justificados, despendendo 49 horas em paragens que não se encontravam justificadas e que contabilizara como tempo de trabalho, consequentemente pago, o que determinara ainda o pagamento de horas extraordinárias e ajudas de custo acrescidas. Findo o inevitável processo disciplinar, Raul foi despedido.
Recorreu então aos tribunais alegando questões formais diversas e a impossibilidade de utilização, como meio de prova, dos registos de GPS do veículo por si conduzido, por se tratar de meios de controlo à distância da actividade do trabalhador, proibidos por lei. Não teve sorte no tribunal de 1.ª instância, que considerou lícito o seu despedimento, mas o Tribunal da Relação do Porto, para onde recorreu, julgou o despedimento ilícito essencialmente por considerar que a utilização do GPS violara o direito de Raul à reserva da intimidade da vida privada, constitucionalmente consagrada.
Recorreu a entidade patronal para o STJ, onde os juízes-conselheiros Mário Belo Morgado, Pinto Hespanhol e Fernandes da Silva tiveram a última palavra sobre a saga de Raul.
Em primeiro lugar consideraram que o GPS não podia ser considerado um meio de vigilância do trabalhador à distância proibido por lei, já que o GPS apenas permite a localização de veículos em tempo real, referenciandoos em determinado espaço geográfico, não permitindo saber o que fazem os respectivos condutores, mas, tão somente, onde se encontram e se estão parados ou em circulação, o que é absolutamente aceitável e razoável no âmbito de uma relação laboral. Depois, consideraram que os factos relativos à localização geográfi ca de um camião de transporte de combustível não estavam abrangidos pelo direito à reserva da intimidade da vida privada do respectivo motorista, sendo certo que o que se discutira no processo disciplinar fora a questão de saber se o trabalhador estava em locais consentâneos com os destinos que lhe haviam sido definidos para entrega de combustível e não o que estava em concreto a fazer nos locais em que efectivamente estivera. Em nada se entrara na vida privada de Raul. E, por último, o STJ considerou absolutamente legítima a utilização dos registos do GPS como prova no processo disciplinar tendo em conta estarem em causa factos imputáveis ao Raul que indiciavam actos lesivos da segurança de pessoas e bens praticados durante o seu horário de trabalho.
Tudo visto, o STJ considerou que o despedimento era lícito, já que o comportamento de Raul violara,
efectivamente, de forma grave e irremediável, os deveres a que estava obrigado enquanto trabalhador. Raul não era um mártir da época digital.
Advogado. Escreve à sexta-feira no Jornal Público
ftmota@netcabo.pt "